Saussure e a Língua Portuguesa
A vitalidade do pensamento saussuriano, com o passar do tempo, só tem feito renovar sua atualidade. Nos últimos anos, tem se multiplicado a bibliografia sobre sua doutrina, difundida a partir da publicação do livro clássico Curso de lingüística geral (CLG). As repercussões de suas idéias motrizes, assim como as escolas delas decorrentes, criaram uma metodologia prática e funcional de abordagem dos fatos lingüísticos. Tal metodologia pode ser aplicada com sucesso ao estudo e ao ensino de português, como demonstra o nosso livro Para compreender Saussure, hoje na 12ª edição, contendo os fundamentos e uma visão crítica das iluminadas idéias do genial fundador da Lingüística moderna, além de exercícios com questões relativas à língua portuguesa. Neste artigo, apresentaremos uma síntese de suas célebres dicotomias: semiologia / lingüística, signo: significado / significante, arbitrariedade / linearidade, linguagem: língua / fala (norma), sincronia / diacronia, sintagma / paradigma e o corolário de tudo isso: a noção de valor.
Semiologia / Lingüística
A Semiologia (ou Semiótica) é a teoria geral dos sinais. Ela difere da Lingüística por sua maior abrangência: enquanto a Lingüística é o estudo científico da linguagem humana, a Semiologia preocupa-se não apenas com a linguagem humana e verbal, mas também com a dos animais e de todo e qualquer sistema de comunicação, seja ele natural ou convencional. Desse modo, a Lingüística insere-se como uma parte da Semiologia. Semiologia e Semiótica são termos permutáveis. A primeira surgiu na Europa, com Saussure, e a segunda, nos Estados Unidos, com o filósofo Charles Sanders Peirce.
O signo lingüístico
arbitrariedade / linearidade
Saussure define o signo como a união do sentido e da imagem acústica. O que ele chama de "sentido" é a mesma coisa que conceito ou idéia, istoé, a representação mental de um objeto ou da realidade social em que nos situamos, representação essa condicionada pela formação sociocultural que nos cerca desde o berço. Em outras palavras, para Saussure, conceito é sinônimo de significado (plano das idéias), algo como o lado espiritual da palavra, sua contraparte inteligível, em oposição ao significante (plano da expressão), que é sua parte sensível. Por outro lado, a imagem acústica "não é o som material, coisa puramente física, mas aimpressão psíquica desse som" (CLG, p. 80). Melhor dizendo, a imagem acústica é o significante. Com isso, temos que o signo lingüístico é "uma entidade psíquica de duas faces"(p. 80), semelhante a uma moeda.
Mais tarde, Jakobson e a Escola Fonológica de Praga irão estabelecer definitivamente a distinção entre som material e imagem acústica. Ao primeiro chamaram de fone, objeto de estudo da Fonética. À imagem acústica denominaram de fonema, conceito amplamente aceito e consagrado pela Fonologia.
Os dois elementos - significante e significado - constituem o signo "estãointimamente unidos e um reclama o outro" (p. 80). São interdependentes e inseparáveis, pois sem significante não há significado e sem significado não existe significante. Exemplificando, diríamos que quando um falante de português recebe a impressão psíquica que lhe é transmitida pela imagem acústica ou significante / kaza /, graças à qual se manifesta fonicamente o signo casa, essa imagem acústica, de imediato, evoca-lhe psiquicamente a idéia de abrigo, de lugar para viver, estudar, fazer suas refeições, descansar, etc. Figurativamente, diríamos que o falante associa o significante / kaza / ao significado domus (tomando-se o termo latino como ponto de referência para o conceito).
Quanto ao princípio da arbitrariedade, Saussure (p. 83) esclarece que arbitrário
... não deve dar a idéia de que o significado dependa da livre escolha do que fala, [porque] não está ao alcance do indivíduo trocar coisa alguma num signo, uma vez esteja ele estabelecido num grupo lingüístico; queremos dizer que o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade. (grifo nosso)
Desse modo, compreendemos por que Saussure afirma que a idéia (ou conceito ou significado) de mar não tem nenhuma relação necessária e "interior" com a seqüência de sons, ou imagem acústica ou significante /mar/. Em outras palavras, o significado mar poderia ser representado perfeitamente por qualquer outro significante. E Saussure argumenta, para provar seu ponto de vista, com as diferenças entre as línguas. Tanto assim que a idéia de mar é representada em inglês pelo significante "sea" /si / e em francês, por "mer" /mér/.
Um exemplo bastante representativo da ausência de vínculo natural entre o significante e o significado é o dos verbos depoentes latinos. Nestes, a forma é passiva, entretanto, o sentido é ativo: sequor "sigo" (e não "sou seguido"), utor "uso" (e não "sou usado"). Nestes signos, o grau de arbitrariedade é extremo, não havendo sequer coerência morfossemântica entre o significante e o significado.
Na verdade, existem dois sentidos para arbitrário:
a) o significante em relação ao significado:
livro, book, livre, Buch, liber, biblion, etc. (significantes diferentes para um mesmo significado);
b) o significado como parcela semântica (em oposição à totalidade de um campo semântico):
ingl. teacher / professor port. professor
ingl. sheep / mutton port. carneiro
Apesar de haver postulado que o signo lingüístico é, em sua origem, arbitrário, Saussure não deixa de reconhecer a possibilidade de existência de certos graus de motivação entre significante e significado. Em coerência com seu ponto de vista dicotômico, propõe a existência de um "arbitrário absoluto" e de um "arbitrário relativo". Como exemplo de arbitrário absoluto, o mestre de Genebra cita os números dez e nove, tomados individualmente, e nos quais a relação entre o significante e o significado seria totalmente arbitrária, isto é, essa relação não é necessária, é imotivada. Já na combinação de dez com nove para formar um terceiro signo, a dezena dezenove, Saussure acha que a arbitrariedade absoluta original dos dois numerais se apresenta relativamente atenuada, dando lugar àquilo que ele classificou como arbitrariedade relativa, pois do conhecimento da significação das partes pode-se chegar à significação do todo.
O mesmo acontece no par pera / pereira, em que pera, enquanto palavra primitiva, serviria como exemplo de arbitrário absoluto (signo imotivado). Por sua vez, pereira, forma derivada de pera, seria um caso de arbitrário relativo (signo motivado), devido à relação sintagmática pera (morfema lexical) + -eira (morfema sufixal, com a noção de "árvore") e à relação paradigmática estabelecida a partir da associação de pereira a laranjeira, bananeira, etc., uma vez que é conhecida a significação dos elementos formadores.
A respeito da linearidade, este é um princípio que se aplica às unidades do plano da expressão (fonemas, sílabas, palavras), por serem estas emitidas em ordem linear ou sucessiva na cadeia da fala. Esse princípio é a base das relações sintagmáticas, assunto que abordaremos mais adiante.
Língua / Fala (norma)
Esta é sua dicotomia básica e, juntamente com o par sincronia / diacronia, constitui uma das mais fecundas. Fundamentada na oposição social / individual, revelou-se com o tempo extremamente profícua. O que é fato da língua (langue) está no campo social; o que é ato da fala ou discurso (parole) situa-se na esfera do individual. Repousando sua dicotomia na Sociologia, ciência nascente e já de grande prestígio então, Saussure (p. 16) afirma e adverte ao mesmo tempo: "A linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o outro". Vale lembrar que, para Saussure, a linguagem é a faculdade natural de usar uma língua, "ao passo que a língua constitui algo adquirido e convencional" (p. 17). Do exame exaustivo do Curso, depreendemos três concepções para língua: acervo lingüístico, instituição social e realidade sistemática e funcional. Analisemo-las à luz do CLG.
A língua, como acervo lingüístico, é "o conjunto dos hábitos lingüísticos que permitem a uma pessoa compreender e fazer-se compreender" (p. 92). A língua é "uma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, fossem repartidos entre os indivíduos" (p. 27). E, com todo o respeito a Saussure, acrescentaríamos nós: um dicionário e uma gramática, cuja extensão será proporcional ao conhecimento e à percepção lingüística do falante.
Na condição de acervo, a língua guarda consigo toda a experiência histórica acumulada por um povo durante a sua existência. Disso nos dá testemunho o latim, símbolo permanente da cultura e das instituições romanas. Também o português, nos seus oito séculos de existência, acumulou um rico e notável acervo lingüístico e literário. Importante língua de cultura, constitui tesouro comum dos povos irmanados pela lusofonia.
Como instituição social, a língua "não está completa em nenhum [indivíduo], e só na massa ela existe de modo completo" (p. 21), por isso, ela é, simultaneamente, realidade psíquica e instituição social. Para Saussure, a língua "é, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos" (p. 17); é "a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude de uma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade" (p. 22).
A visão da língua como realidade sistemática e funcional é o conteúdo mais importante da concepção saussuriana. Para o mestre de Genebra, a língua é, antes de tudo, "um sistema de signos distintos correspondentes a idéias distintas" (p. 18); é um código, um sistema onde, "de essencial, só existe a união do sentido e da imagem acústica" (p. 23). Saussure vê a língua como um objeto de "natureza homogênea" (p. 23) e que, portanto, se enquadra perfeitamente na sua definição basilar: "a língua é um sistema de signos que exprimem idéias" (p. 24). Essa concepção da língua como sistema funcional está imbricada com a noção de valor (v. conclusão).
A fala, ao contrário da língua, por se constituir de atos individuais, torna-se múltipla, imprevisível, irredutível a uma pauta sistemática. Os atos lingüísticos individuais são ilimitados, não formam um sistema. Os fatos lingüísticos sociais, bem diferentemente, formam um sistema, pela sua própria natureza homogênea. Vale ressaltar, no entanto, que tanto o funcionamento quanto a exploração da faculdade da linguagem estão intimamente ligados às implicações mútuas existentes entre os elementos língua (virtualidade) e fala (realidade).
Quanto ao conceito denorma, trata-se de uma contribuição do lingüista romeno Eugenio Coseriu, que propôs um acréscimo à dicotomia saussuriana. Sua tricotomia vai do mais concreto (fala, uso individual da norma) ao mais abstrato (língua, sistema funcional), passando por um grau intermediário: a norma (uso coletivo da língua). Em outras palavras, há realizações consagradas pelo uso e que, portanto, são normais em determinadas circunstâncias lingüísticas, previstas pelo sistema funcional. É à norma que nos prendemos de forma imediata, conforme o grupo social de que fazemos parte e a região onde vivemos. A norma seria assim um primeiro grau de abstração da fala. Considerando-se a língua (o sistema) um conjunto de possibilidades abstratas, a norma seria então um conjunto de realizações concretas e de caráter coletivo da língua. Vejamos alguns exemplos da oposição norma / sistema no português do Brasil.
O conhecido [š], chiante pós-vocálica, variante de [s], é norma no Rio de Janeiro em todas as classes sociais: gás [gaš], mês [meš], basta [bašta]. Já no Sul, a pronúncia sancionada pelo uso (ou norma) é marcadamente alveolar: [basta], [mês], [gás]. No campo da Morfologia, o sistema dispõe dos sufixos -ada e -edo, ambos com o sentido de coleção. Enquanto, para designar grande quantidade de bichos, a norma culta prefere o primeiro (bicharada), a norma geral no falar gaúcho consagrou o segundo: bicharedo. O mesmo acontece com os sufixos diminutivos -inho e -ito, ambos disponíveis no sistema funcional: a norma fora do Rio Grande do Sul é dizer-se salaminho;já em terras gaúchas o uso sancionou salamito. No plano sintático, a língua(sistema) portuguesa dispõe dos advérbios já e mais, que, quando usados numa frase negativa, indicam a cessação de um fato ou de uma ação. A norma brasileira preferiu o segundo: "Eu não vou mais"; "Não chove mais". A portuguesa optou pelo primeiro: "Eu já não vou"; "Já não chove". O português do Brasil prefere descrever um fato em progressão dizendo: "Estou estudando" (aux. + gerúndio); já em Portugal, a norma é usar-se aux. + infinitivo: "Estou a estudar". Ainda com relação à norma brasileira, não podemos deixar de mencionar o uso consagrado do verbo ter no lugar de haver, com o sentido de "existir", uso inclusive já referendado por vários autores brasileiros de peso, como Carlos Drummond de Andrade ("No meio do caminho tinha uma pedra") e Manuel Bandeira ("Em Pasárgada tem tudo), dentre outros.
Nesse sentido, cabe ressaltar que certos deslocamentos da norma, constantes e repetidos, podem, com o tempo, fazer evoluir (mudar) a língua. É o que vem ocorrendo, por exemplo, com a pronúncia do adjetivo "ruim". A norma gramatical em vigor recomenda pronunciá-lo como hiato: ruím. Entretanto, a norma geral no português do Brasil é a sua realização como ditongo: rúim, malgrado os esforços da escola. É possível que no futuro seja esta a única pronúncia em vigor, tanto no sistema (língua) quanto na norma (uso).
Tipos de Norma
As variantes coletivas (ou subcódigos) dentro de um mesmo domínio lingüístico dividem-se em dois tipos principais: diatópicas (variantes ou normas regionais ) e diastráticas (variantes culturais ou registros).
As variantes diatópicas caracterizam as diversas normas regionais existentes dentro de um mesmo país e até dentro de um mesmo estado, como o falar gaúcho, o falar mineiro, etc. Por exemplo, "cair um tombo", no Rio Grande do Sul; "levar um tombo", no Rio de Janeiro.
As variantes diastráticas, intimamente ligadas à estratificação social, evidenciam a variedade de diferenças culturais dentro de uma comunidade e podem subdividir-se em norma culta padrão (ou nacional), norma coloquial (tensa ou distensa) e norma popular (também chamada de vulgar).
A norma culta é a modalidade escrita empregada na escola, nos textos oficiais, científicos e literários. Baseada na tradição gramatical, é a variante de maior prestígio sociocultural. Ex.: Há muito tempo não o vejo. Vendem-se carros. Haviadez alunos em sala.
A norma coloquial é aquela empregada oralmente pelas classes médias escolarizadas. Viva e espontânea, seu grau de desvio em relação à norma culta pode variar conforme as circunstâncias de uso. Ex.: Tem muito tempo que não lhe vejo / não vejo ele. Vende-se carros. Tinha dez alunos em sala.
A norma popular caracteriza a fala das classes populares semi-escolarizadas ou não-escolarizadas. Nessa modalidade, o desvio em relação à norma gramatical é maior, caracterizando o chamado "erro". Ex.: A gente fomos na praia. Dois cachorro-quente custa três real.
Há também as variantes diafásicas, que dizem respeito aos diversos tipos de modalidade expressiva (familiar, estilística, de faixa etária, etc.).
Constatamos assim a pertinência da divisão tripartida de Coseriu. Todos os exemplos citados, quer caracterizando o falar de uma região, quer identificando o próprio português do Brasil, mostram a propriedade e a conveniência do fator intermediário norma entre a fala e a língua, fator este que tem por princípio realizar e dinamizar o sistema funcional (língua). Ressalve-se, contudo, que a concepção saussuriana da língua como instituição social se aproxima, de certo modo, da teoria da norma de Coseriu.
Sincronia / Diacronia
A sincronia é o eixo das simultaneidades, no qual devem ser estudadas as relações entre os fatos existentes ao mesmo tempo num determinado momento do sistema lingüístico, que pode ser tanto no presente quanto no passado. Em outras palavras, sincronia é sinônimo de descrição, de estudo do funcionamento da língua. Por outro lado, no eixo das sucessividades ou diacronia, o lingüista tem por objeto de estudo a relação entre um determinado fato e outros anteriores ou posteriores, que o precederam ou lhe sucederam. E Saussure adverte que tais fatos (diacrônicos) "não têm relação alguma com os sistemas, apesar de os condicionarem" (p. 101). Em outras palavras, o funcionamento sincrônico da língua pode conviver harmoniosamente com seus condicionamentos diacrônicos. Acrescente-se ainda que a diacronia divide-se em história externa (estudo das relações existentes entre os fatores socioculturais e a evolução lingüística) e história interna (trata da evolução estrutural - fonológica e morfossintática - da língua).
Saussure considera prioritário o estudo sincrônico porque o falante nativo não tem consciência da sucessão dos fatos da língua no tempo. Para o indivíduo que usa a língua como veículo de comunicação e interação social, essa sucessão não existe. A única e verdadeira realidade tangível que se lhe apresenta de forma imediata é a do estado sincrônico da língua. Além disso, como a relação entre o significante e o significado é arbitrária, estará continuamente sendo afetada pelo tempo, daí a necessidade de o estudo da língua ser prioritariamente sincrônico. Sirva de exemplo o substantivo romaria, que significava originalmente "peregrinação a Roma para ver o Papa". Hoje, no entanto, é usado unicamente para designar "peregrinação religiosa em geral". Entre nós, por exemplo, são muito comuns as romarias a Aparecida do Norte, em São Paulo.
Advirta-se, contudo, o seguinte: Saussure postula a prioridade da sincronia e, convém lembrar, prioridade não significa exclusividade. De nossa parte, entendemos a distinção sincronia / diacronia unicamente como procedimentos metodológicos de análise lingüística. A esse respeito, ouçamos as ponderações, até certo ponto premonitórias, do próprio Saussure (p. 16):
A cada instante, a linguagem implica ao mesmo tempo um sistema estabelecido e uma evolução: a cada instante, ela é uma instituição atual e um produto do passado.
A língua, portanto, será sempre sincronia E diacronia em qualquer momento de sua existência. O ponto de vista da ciência lingüística é que poderá ser OU sincrônico OU diacrônico, dependendo do fim que se pretende atingir. E há determinados casos, por exemplo, em que a descrição sincrônica pode perfeitamente ser conjugada com a explicação diacrônica, enriquecendo-se, desse modo, a análise feita pelo lingüista. Por exemplo, podemos descrever o verbo pôr como pertencente à segunda conjugação, apelando para as formas sincrônicas atuais pões, põe, puseste, etc., além dos adjetivos poente e poedeira, nos quais o -e- medial aí existente (ou remanescente) funciona estruturalmente como vogal temática. Ao mesmo tempo, podemos enriquecer a descrição sincrônica, complementando-a com a explicação diacrônica: o atual verbo pôr já foi representado pelo infinitivo arcaico poer, que, por sua vez, se vincula ao latim vulgar ponere, com a seguinte cadeia evolutiva: poněre > ponēre > poner > põer > poer > pôr.
Encarados sob essa perspectiva, os pontos de vista sincrônico e diacrônico não são excludentes, ao contrário, são complementares. Seja como for, vale registrar que Saussure, deixando de se preocupar com o processo pelo qual as línguas se modificam, para tentar saber o modo como elas funcionam, deu, coerentemente, primazia ao estudo sincrônico, ponto de partida para a Lingüística Geral e o chamado método estruturalista de análise da língua.
Sintagma / Paradigma
Para Saussure, tudo na sincronia se prende a dois eixos: o associativo (= paradigmático) e o sintagmático.
As relações sintagmáticas baseiam-se no caráter linear do signo lingüístico, "que exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo" (p. 142). A língua é formada de elementos que se sucedem um após outro linearmente, isto é, "na cadeia da fala" (p. 142). À relação entre esses elementos Saussure (p. 142) chama de sintagma:
O sintagma se compõe sempre de duas ou mais unidades consecutivas: re-ler, contra todos, a vida humana, Deus é bom, se fizer bom tempo, sairemos, etc.
Colocado na cadeia sintagmática, um termo passa a ter valor em virtude do contraste que estabelece com aquele que o precede ou lhe sucede, "ou a ambos", visto que um termo não pode aparecer ao mesmo tempo que outro, em virtude do seu caráter linear. Em "Hoje fez calor", por exemplo, não podemos pronunciar a sílaba je antes da sílaba ho, nem ho ao mesmo tempo que je; lor antes de ca, ou ca simultaneamente com lor é impossível. É essa cadeia fônica que faz com que se estabeleçam relações sintagmáticas entre os elementos que a compõem. Como a relação sintagmática se estabelece em função da presença dos termos precedente e subseqüente no discurso, Saussure a chama também de relação in præsentia.
Por outro lado, fora do discurso, isto é, fora do plano sintagmático, se, em "Hoje fez calor", dizemos hoje pensando opô-lo a outro advérbio, ontem, por exemplo, ou fez em oposição a faz, e calor a frio, estabelecemos uma relação paradigmática associativa ou in absentia, porque os termos ontem, faz e frio não estão presentes no discurso. São elementos que se encontram na nossa memória de falante "numa série mnemônica virtual", conforme esclarece Saussure na pág. 143 do CLG.
O paradigma é assim uma espécie de "banco de reservas" da língua, um conjunto de unidades suscetíveis de aparecer num mesmo contexto. Desse modo, as unidades do paradigma se opõem, pois uma exclui a outra: se uma está presente, as outras estão ausentes. É a chamada oposição distintiva, que estabelece a diferença entre signos como gado e gato ou entre formas verbais como estudava e estudara, formados respectivamente a partir da oposição sonoridade / não-sonoridade e pretérito imperfeito / mais-que-perfeito. A noção de paradigma suscita, pois, a idéia de relação entre unidades alternativas. É uma espécie de reserva virtual da língua.
Define-se o sintagma como "a combinação de formas mínimas numa unidade lingüística superior". Trata-se, portanto, de relações (relação = dependência, função) onde o que existe, em essência, é a reciprocidade, a coexistência ou solidariedade entre os elementos presentes na cadeia da fala. Essas relações sintagmáticas ou de reciprocidade existem, a nosso ver, em todos os planos da língua: fônico, mórfico e sintático, ao contrário do que deixa entrever a definição do próprio Saussure, que nos induz a conceber o sintagma apenas nos planos mórfico e sintático. Sendo assim, o sintagma, em sentido lato, é toda e qualquer combinação de unidades lingüísticas na seqüência de sons da fala, a serviço da rede de relações da língua. Por exemplo, no plano fônico, a relação entre uma vogal e uma semivogal para formar o ditongo (ai /ay/); no nível mórfico, a própria palavra, com seus constituintes imediatos, é um sintagma lexical (am + a + va + s); sintaticamente, a relação sujeito + predicado caracteriza o sintagma oracional (Pedro / estudou a lição.).
Uma Visão Estilística
No plano da expressão, as relações paradigmáticas operam com base na similaridade de sons. É o caso das rimas ("Mas que dizer do poeta / numa prova escolar? / Que ele é meio pateta / e não sabe rimar?", Carlos Drummond de Andrade), aliterações ("Vozes veladas, veludosas vozes", Cruz e Sousa), assonâncias ("Tíbios flautins finíssimos gritavam", Olavo Bilac), homoteleutos [ou homeoteleutos] ("Rita não tem cultura, mas tem finura", Machado de Assis).
No plano do conteúdo, as relações paradigmáticas baseiam-se na similaridade de sentido, na associação entre o termo presente na frase e a simbologia que ele desperta em nossa mente. É o caso da metáfora: "O pavão é um arco-íris de plumas." (Rubem Braga), ou seja, arco-íris = semicírculo ou arco multicor. Embora presente no texto em prosa, a metáfora é mais usual na poesia.
Já a metonímia, mais comum na prosa, por basear-se numa relação de contigüidade de sentido, atua no eixo sintagmático. Ex.: O autor pela obra: "Gosto de ler Machado de Assis"; a parte pelo todo: "Os desabrigados ficaram sem teto" (= casa); o continente pelo conteúdo: "Tomei um copo de vinho" (o vinho contido no copo), etc.
Conclusão
A visão saussuriana da língua como um sistema de valores está intimamente associada à sua célebre frase: "na língua só existem diferenças", ou seja , ela funciona sincronicamente e com base em relações opositivas (paradigmáticas) no sistema e contrastivas (sintagmáticas) no discurso. Tendo como ponto de partida as idéias motrizes contidas no Curso de lingüística geral, formaram-se várias escolas estruturalistas (fonológica de Praga, estilística de Genebra, funcionalista de Paris, glossemática de Copenhague), que deram conseqüência e continuidade ao pensamento infelizmente inacabado do genial fundador da Lingüística moderna. A visão da língua como um sistema semiológico, a teoria do signo, com seus dois princípios fundamentais: arbitrariedade / linearidade, a diferença entre sincronia (funcionamento) e diacronia (evolução), a distinção fonética / fonologia, fone / fonema, a dupla articulação da linguagem (1ª = plano do conteúdo ou morfossintaxe; 2ª = plano da expressão ou fonologia), as noções de morfema e gramema, a tricotomia língua / fala / norma são categorias lingüísticas extremamente férteis, todas decorrentes do pensamento de Saussure e hoje definitivamente incorporadas às ciências da linguagem.
Bibliografia
CARVALHO, Castelar de. Para compreender Saussure. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. Trad de A. Chelini , José P. Paes e I. Blikstein. São Paulo: Cultrix; USP, 1969.
A Língua Segundo Saussure
Para Saussure"é sincrônico tudo quanto se relacione com o aspecto estático da nossa ciência, diacrônico tudo que diz respeito às evoluções. Do mesmo modo, sincronia e diacronia designarão respectivamente um estado de língua e uma fase de evolução" (SAUSSURE, 1995, p.96).
Por língua entende-se um conjunto de elementos que podem ser estudados simultaneamente, tanto na associação paradigmática como na sintagmática. Por solidariedade objetiva-se dizer que um elemento depende do outro para ser formado.
Para Ferdinand Saussure a linguagemé social e individual; psíquica; psico-fisiológica e física. Portanto, a fusão de Língua e Fala. Para ele, a Língua é definida como a parte social da linguagem e que só um indivíduo não é capaz de mudá-la. O linguista afirma que "a língua é um sistema supra-individual utilizado como meio de comunicação entre os membros de uma comunidade", portanto "a língua corresponde à parte essencial da linguagem e o indivíduo, sozinho, não pode criar nem modificar a língua" (COSTA, 2008, p.116).
A Fala é a parte individual da Linguagem que é formada por um ato individual de caráter infinito. Para Saussure é um "ato individual de vontade e inteligência" (SAUSSURE, 1995, p.22).
Língua e Fala se relacionam no fato da Fala ser a condição de ocorrência da Língua.
O signo lingüístico resulta de uma convenção entre os membros de uma determinada comunidade para determinar significado e significante. Portanto, se um som existe dentro de uma língua ele passa a ter significado, algo que não aconteceria se ele fosse somente um som em si.
Então, "afirmar que o signo lingüístico é arbitrário, como fez Saussure, significa reconhecer que não existe uma reação necessária, natural, entre a sua imagem acústica (seu significante) e o sentido a que ela nos remete (seu significante)." (COSTA, 2008, p.119).
O sintagma é a combinação de palavras que podem ser associadas, portanto, as palavras podem ser comparadas ao paradigma.
"No discurso, os termos estabelecem entre si, em virtude de seu encadeamento, relações baseadas no caráter linear da língua, que exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo. Estes se alinham um após outro na cadeia da fala. Tais combinações, que se apóiam na extensão, podem ser chamadas de sintagmas." (SAUSSURE, 1995, p.142)
As relações paradigmáticas se caracterizam pela associação entre um termo de um contexto sintático. Por exemplo, gato e gado. Quando se juntam as partes paradigmáticas, ocorre o sintagma. Em geral,
"as línguas apresentam relações paradigmáticas ou associativas que dizem respeito à associação mental que se dá entre a unidade lingüística que ocupa um determinado contexto (uma determinada posição na frase) e todas as outras unidades ausentes que, por pertencerem à mesma classe daquela que está presente poderiam substituí-la nesse mesmo contexto." (COSTA, 2008, p.121)
É importante ressaltar que sintagmas e paradigmas seguem a regra da língua para que essa relação associativa ocorra. Portanto,
"as relações paradigmáticas manifestam-se como relações in absentia, pois caracterizam a associação entre um termo que está presente em um determinado contexto sintático com outros que estão ausentes desse contexto, mas que são importantes para a sua caracterização em termos opositivos." (COSTA, 2008, p.121)
Conclui-se que, "as relações sintagmáticas e as relações paradigmáticas ocorrem concomitantemente." (COSTA, 2008, p.122)
No livro Curso de lingüística geral, Saussure afirma que "a lingüística tem por único e verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma", assim, esta é fundamental para que possamos compreender os postulados de Saussure.
A afirmativa Saussureana explícita que a lingüística se preocupa exclusivamente com o estudo da língua por ela ser um sistema de regras e organizações utilizadas por uma determinada comunidade para a comunicação e compreensão entre si.
Para Saussure, "a lingüística seria um ramo da semiologia, apresentando um caráter mais específico em função de seu particular interesse pela linguagem verbal." (MARTELOTTA, 2008, p.23)
Para o lingüista suíço, a lingüística pretende
"fazer a descrição e a história de todas as línguas que puder abranger, o que quer dizer: fazer a história das famílias de línguas e reconstituir, na medida do possível, as línguas-mães de cada família; procurar as forças que estão em jogo, de modo permanente e universal, em todas as línguas e deduzir as leis gerais às quais se possam referir todos os fenômenos peculiares da histórias; delimitar-se e definir-se a si própria." (SAUSSURE, 1995, p.13)
Cada língua apresenta uma estrutura específica e esta estruturação é evidenciada a partir de três níveis: o fonológico, o morfológico e o sintático, que constituem uma hierarquia com o fonológico na base e o sintático no topo. Portanto, cada unidade é definida em função de sua posição estrutural, de acordo com os elementos que a precedem e que a seguem na construção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, M.A. Estruturalismo. In: MARTELOTTA, M.E. (Org.) et al. Manual de Lingüística. São Paulo: Contexto, 2008.
SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral. Trad. De Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1995.
2º SEMESTRE - Ferdinand de Saussure

Ferdinand de Saussure (Genebra, 26 de novembro de 1857 - Morges, 22 de fevereiro de 1913) foi um linguista e filósofo suíço, cujas elaborações teóricas propiciaram o desenvolvimento da linguística enquanto ciência autônoma. Seu pensamento exerceu grande influência sobre o campo da teoria da literatura e dos estudos culturais. Saussure entendia a linguística como um ramo da ciência mais geral dos signos, que ele propôs fosse chamada de Semiologia. Graças aos seus estudos e ao trabalho de Leonard Bloomfield, a linguística adquiriu autonomia, objeto e método próprios. Seus conceitos serviram de base para o desenvolvimento do estruturalismo no século XX.
Biografia
Ferdinand de Saussure (pronúncia francesa: [fɛʁdi'nã də so'syʁ]) nasceu em Genebra, em 26 de novembro de 1857. Filho de um eminente naturalista, foi introduzido pelo filólogo e amigo da família Adolphe Pictet nos estudos linguísticos. Saussure estudou Física e Química, mas continuou sendo introduzido nos cursos de gramática grega e latina. Em 1874 começou a estudar sozinho o sânscrito, usando a gramática de Franz Bopp. Por fim, convenceu-se que sua carreira estava nos estudos da linguagem e ingressou na Sociedade Linguística de Paris (fundada em 1866). Estudou línguas europeias na Universidade de Lípsia, onde ingressou em outubro de 1876. Após pouco menos de dois anos, transfere-se por curto período à Universidade de Berlim. Aos vinte e um anos publicou uma dissertação sobre o sistema primitivo das vogais nas línguas indo-europeias (em francês: "Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européennes" - ano 1879), a qual foi muito bem aceita. Defendeu sua tese sobre o uso do caso genitivo em sânscrito, em Berlim, e depois retornou à Paris, onde passou a ensinar Sânscrito, Gótico e Alto Alemão e depois Filologia Indo-Europeia. Retornou a Genebra, onde lecionou sânscrito e linguística histórica em geral.
Entre 1907 e 1910, Saussure ministrou três cursos sobre linguística na Universidade de Genebra. Em 1916, três anos após sua morte, dois de seus alunos, Charles Bally e Albert Sechehaye, com a colaboração de A. Ridlinger, compilaram as anotações de alunos que compareceram a estes cursos e editaram o Curso de linguística Geral, livro seminal da ciência linguística.
Paralelamente ao trabalho teórico reunido no Curso, Saussure também realizou, entre 1906 e 1909, outro estudo que é comumente chamado de Os anagramas de Saussure. Nesse trabalho, o mestre genebrino perscrutou um corpus de poemas clássicos para tentar provar a existência de um mecanismo de composição poética baseado na análise fônica das palavras; mecanismo este formado pelo anagrama e pelo hipograma. O hipograma (palavra-tema) é o nome de um deus ou de um herói diluído foneticamente no poema. O anagrama, por sua vez, é o processo que propicia a diluição do hipograma nos versos.
As dicotomias saussurianas
✻ Língua X Fala
Saussure também efetua, em sua teorização, uma separação entre língua e fala. Para ele, a língua é um sistema de valores que se opõem uns aos outros. Ela está depositada como produto social na mente de cada falante de uma comunidade e possui homogeneidade. Por isto é o objeto da linguística propriamente dita. Diferente da fala que é um ato individual e está sujeito a fatores externos, muitos desses não linguísticos e, portanto, não passíveis de análise.
✻ Sincronia vs. diacronia
Ferdinand de Saussure enfatizou uma visão sincrônica, um estudo descritivo da linguística em contraste à visão diacrônica da linguística histórica, a qual estudava a mudança dos signos no eixo das sucessões históricas, estudo este que era a maneira pela qual o estudo de línguas era tradicionalmente realizado no século XIX. Ao propor uma visão sincrônica, Saussure procurou entender a estrutura da linguagem como um sistema em funcionamento em um dado ponto do tempo (recorte sincrônico).✻ Sintagma vs. paradigma
O sintagma,
definido por Saussure como "a combinação de formas mínimas numa unidade
linguística superior", surge a partir da linearidade do signo, ou seja,
ele exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo,
pois um termo só passa a ter valor a partir do momento em que ele se
contrasta com outro elemento. Já o paradigma é, como o próprio autor
define, um "banco de reservas" da língua, fazendo com que suas unidades
se oponham, pois uma exclui a outra.
✻ Significante vs. significado
O signo linguístico constitui-se numa combinação de significante e significado, como se fossem dois lados de uma moeda. O significante é uma "imagem acústica" (cadeia de sons) e reside no plano da forma. O significado é o conceito e reside no plano do conteúdo.
A teoria do valor
A teoria do valor é um dos conceitos cardeais do pensamento de Saussure. Sumariamente, esta teoria postula que os signos linguísticos estão numa relação diferencial e negativa entre si dentro do sistema de língua, pois um signo só adquire valor na medida em que não é um outro signo qualquer: um signo é aquilo que os outros signos não são.
Como exemplo disso, podemos ter a diferenciação entre cão e homem. A característica positiva "mamífero" não os distingue, mas a característica "quadrúpede", positiva no cão e negativa no homem, os distingue. Existindo outros animais com a característica "quadrúpede", outras características devem ser consideradas para definir o que o animal é. Todavia, é definitivo que não são homem por não possuírem a característica "bípede".
Estruturalismo: Quais as origens desse método de análise?
Pode-se dizer que o estruturalismo foi o último movimento filosófico francês a ganhar notoriedade mundial, logo após o existencialismo, corrente criticada em debates que envolveram dois dos maiores expoentes dessas escolas filosóficas, respectivamente, Michel Foucault (1926-1984) e Jean-Paul Sartre (1905- 1980).
Mas o estruturalismo reuniu pensadores de diversas áreas das ciências humanas, a ponto de ser difícil encontrar um núcleo coeso que permita classificá-lo como sistema filosófico. Na verdade, o estruturalismo é mais um método de análise, que consiste em construir modelos explicativos de realidade, chamados estruturas.
Por estrutura entende-se um sistema abstrato em que seus elementos são interdependentes e que permite, observando-se os fatos e relacionando diferenças, descrevê-los em sua ordenação e dinamismo. É um método que contraria o empirismo, que vê a realidade como sendo constituída de fatos isolados. Para o estruturalismo, ao contrário, não existem fatos isolados, mas partes de um todo maior. Assim, compreende-se que:
• Alguns fenômenos podem ser explicados não pelo que deixam à mostra, mas por uma estrutura subjacente.
• Os fatos possuem uma relação interna, de tal forma que não podem ser entendidos isoladamente, mas apenas em relação aos seus pares antagônicos.
Para entender como esse método funciona, é preciso estudar suas origens, na Linguística e na Antropologia.
A linguagem - O método estruturalista foi usado pela primeira vez pelo linguista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913) em sua obra póstuma, editada por alunos, Curso de Linguística Geral. Nesta obra, Saussure fornece as bases teóricas para duas importantes ciências do século 20: a Linguística Estrutural e a Semiologia, ou ciência dos signos.
As teorias de Saussure podem ser explicadas por meio de quatro dicotomias. A primeira diz respeito a duas formas de se abordar a linguagem:
• Língua: o aspecto social da linguagem.
• Fala: o aspecto individual da linguagem.
A segunda refere-se a tipos de estudos da linguagem:
• Linguística sincrônica (estática ou descritiva): estuda a constituição da língua (fonemas, palavras, gramática, etc.) num dado momento.
• Linguística diacrônica (evolutiva ou histórica): estuda as mudanças da língua através dos tempos.
A originalidade de Saussure foi propor um estudo da língua enquanto
sistema social de um ponto de vista sincrônico, não histórico, como
vinha sendo feito antes. Ele também propõe o nome de semiologia, ou
estudo do signo linguístico, que contém:
• Significante: é a expressão material do signo, como o som da palavra "árvore" ou a imagem da palavra escrita no papel.
• Significado: o conceito que o significante representa ou o conteúdo do signo, uma ideia, como a árvore que eu imagino ao ouvir ou ler a palavra escrita.
A palavra estrutura não aparece na obra do linguista suíço, mas se faz presente no conceito de sistema, que quer dizer uma análise estrutural que inclui o estudo da língua em suas relações internas, conforme a terceira dicotomia:
• Eixo sintagmático: um termo só é compreendido em oposição (relação) a outro termo. Ex.: "O semáforo está verde".
• Eixo paradigmático: o termo é associado a outros, presentes na memória. Por exemplo, na frase anterior, ao invés de semáforo, uso "sinal" e ao invés de "está verde", "abriu": "O sinal abriu".
Saussure, ao entender a linguagem como estrutura subjacente e sistema cujos elementos são solidários entre si (e que, somente assim, adquirem valor e sentido), e, ainda, vista de uma perspectiva não histórica, inaugurou o método estruturalista de análise.
Os mitos - A primeira aplicação do estruturalismo fora do âmbito da linguística foi feita pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908), hoje aposentado e um dos mais importantes intelectuais vivos.
Lévi-Strauss observou, ao estudar tribos indígenas de vários países, incluindo o Brasil, um conjunto de normas que se preservavam em diferentes culturas, como se fossem formas inconscientes que moldavam o pensamento e o comportamento dos povos. Diferente de uma abordagem histórica, que não veria as relações, ele empregou o método da linguística estrutural em, basicamente, dois sentidos:
• Como uma estrutura profunda ou inconsciente.
• Como elementos que só adquirem significado quando vistos dentro dessa estrutura.
Consequentemente, existiriam estruturas que determinam regras de
vestuário, alimentação, parentesco, condutas morais e políticas
recorrentes em diferentes povos, e que não são visíveis.
Os mitos, segundo Lévi-Strauss, são estruturados com linguagem, de modo
que, da mesma forma que na língua - eu não penso em formas gramaticais
quando falo, apenas falo -, também não penso em mitos quando os
reproduzo inconscientemente (como Freud mostrou com o mito de Édipo, por
exemplo): os mitos só funcionam quando a estrutura permanece invisível,
como a linguagem.
A conclusão do antropólogo é a de que o pensamento mítico não está no homem, mas o próprio homem é que é pensado nos mitos.
Mas vejamos outro exemplo da antropologia estrutural de Lévi-Strauss nas relações de parentesco. Parte-se da compreensão de que fenômenos de parentesco são estruturados como fenômenos linguísticos. Então, procede-se à identificação de elementos desta estrutura: pai, mãe, filhos, tios e irmãos. Cada um desses termos só faz sentido estando em relação aos demais: o pai autoritário em relação à mãe protetora, por exemplo.
O que o antropólogo verificou, no convívio com culturas diversas, foi
que, apesar das diferentes formas de filiação e relações de afetividade,
hostilidade, antagonismo ou reserva (tios mais afetivos, pais mais
hostis e irmãos mais conflituosos, por exemplo), a mesma estrutura de
oposições - pai/mãe, tios/sobrinhos, irmãos/irmãs - permanece
inalterada.
Outros estruturalistas - No decorrer das décadas de 1960 e 1970, surgiram aplicações do método estruturalista em áreas como crítica literária, cinema, estudos culturais e publicidade, entre outros, o que provocou críticas de abusos.
Alguns dos mais renomados intelectuais e pensadores franceses empregaram o método em suas obras, como Jacques Lacan (1901-1981), que concebeu o inconsciente como estruturado na forma de linguagem; Foucault, que estudou estruturas discursivas que condicionavam o pensamento do homem em determinadas épocas; Roland Barthes (1915-1980), que examinou os mitos modernos, a moda e a literatura; e Louis Althusser (1918-1990), que fez uma leitura estruturalista da obra de Marx.
LINK: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/estruturalismo-quais-as-origens-desse-metodo-de-analise.htm
Diferente de Saussure, ele...
Noam Chomsky

Avram Noam Chomsky (Filadélfia, 7 de dezembro de 1928) é um linguista, filósofo, cientista cognitivo, comentarista e ativista político norte-americano, reverenciado em âmbito acadêmico como "o pai da linguística moderna",[1][2] também é uma das mais renomadas figuras no campo da filosofia analítica.[3]
Chomsky é Professor Emérito em Linguística no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, e teve seu nome associado à criação da gramática ge(ne)rativa transformacional. É também o autor de trabalhos fundamentais sobre as propriedades matemáticas das linguagens formais, tendo seu nome associado à chamada Hierarquia de Chomsky. Seus trabalhos, combinando uma abordagem matemática dos fenómenos da linguagem com uma crítica do behaviorismo, nos quais a linguagem é conceitualizada como uma propriedade inata do cérebro/mente humanos, contribuem decisivamente para a formação da psicologia cognitiva, no domínio das ciências humanas.
Além da sua investigação e ensino no âmbito da linguística, Chomsky é também conhecido pelas suas posições políticas de esquerda e pela sua crítica da política externa dos Estados Unidos. Chomsky descreve-se como um socialista libertário. Identifica-se com aquilo que é modernamente compreendido como "anarcossindicalismo", havendo também quem o associe ao anarcocomunismo ou ao comunismo de conselhos.
Dentro da cabeça de Noam Chomsky
Chomsky mudou o objeto de estudo da lingüística. Como tinha acontecido um século antes no domínio da natureza bruta, também na ciência da linguagem pouca gente tinha ousado alguma teoria unificadora. Chomsky o fez.
Lingüística é o estudo da linguagem, da gramática das diferentes línguas e da história desses idiomas. Quando Chomsky apareceu no cenário intelectual, esse ramo da ciência tinha vivido poucos avanços significativos. Para falar a verdade, dois. O primeiro foi a criação da tradição clássica, originada no mundo grego, que perdurou até o final do século 19. O segundo salto foi o estruturalismo, criado pelo suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913).
Na visão clássica, estudava-se uma língua só por meio dos textos escritos. Os lingüistas rastreavam registros escritos, desde as línguas antigas (latim, grego, aramaico) até alcançar o presente. Esse tipo de abordagem exigia estudiosos que dominassem várias línguas, fazendo descrições de cada caso. Havia pouca capacidade de generalização, ou seja, de transpor o conhecimento acumulado sobre uma língua para outra língua. Era uma abordagem enciclopédica, que considerava os registros escritos como o ponto alto de um idioma.
No começo do século 20, era essa visão normativa, com separação clara do que era certo e o que era errado, que dominava o estudo da língua. Quer dizer: o que importava não era saber como funcionava a linguagem, e sim estabelecer e perpetuar as formas tidas como corretas, socialmente prestigiadas. O exemplo brasileiro mais saliente dessa visão é o de Ruy Barbosa, o jurista e político cujos textos, até a metade do século passado, foram tidos como um exemplo de português culto. Essa visão também influenciava o ensino. Na escola, estudava-se a origem da língua (seus pais ou avós provavelmente tiveram aulas de latim) e as mudanças que ocorreram na língua-mãe, até chegar à língua moderna culta. Parecia impossível ensinar o idioma de outro modo.
Saussure inovou, comparando o aprendizado de uma língua a um jogo de xadrez. Numa partida em curso, qualquer pessoa pode tomar o lugar de um dos jogadores, porque as regras do jogo são poucas e bem conhecidas. Por isso, não importa muito saber como o cavalo foi parar ali, ou como a torre foi perdida. O que vale é saber que, dada a situação das peças e conhecidas as regras, a partida pode seguir, agora manejada por alguém que chegou depois do início. Assim é o aprendizado da língua, disse ele: ninguém tem que obrigatoriamente saber a história da língua para falá-la e escrevê-la aqui e agora.
Foi um golpe certeiro. O estruturalismo, como ficou conhecida essa modalidade de estudo da língua, foi tão bem recebido que se expandiu para outras áreas (a antropologia, por exemplo). Para os adeptos dessa visão, estudar uma língua é realçar as estruturas que a compõem e descrevê-las, sem ligar para a história que a trouxe do mundo primitivo até o presente. Estava aberto o caminho para uma abordagem científica da linguagem, porque não se tratava mais de caçar o certo e o errado, mas de tomar a língua como um objeto. Com isso, caía por terra a suposta superioridade de uma língua sobre outra.
Tal mudança tinha motivações concretas. Uma delas era o contato cada vez mais freqüente com línguas não oriundas nem do latim nem do grego. Com sua postura etnocêntrica e escritocêntrica, um lingüista clássico, defrontado com uma língua indígena puramente oral, sem registro escrito, nada podia fazer. O idioma morreria com o último falante nativo. (Anos depois, Chomsky disse que com a perda de uma língua se perde uma pista, talvez irrecuperável, para a solução do mistério da linguagem humana.) Mas, se ele quisesse conhecer o modo de ser daquela cultura, seria preciso outra atitude: gravar as falas dos índios, anotá-las e depois descrevê-las no maior detalhe possível.
O estruturalismo permitia essa revolucionária abordagem: não há aquela visão normativa, de certo e errado, nem necessidade de recorrer à história para entender o presente. A ênfase recai sobre a base empírica, sobre os dados de linguagem verificáveis. Pela primeira vez, a língua ganha estatuto científico, com autonomia em relação à moral, à cultura, aos bons costumes.
Como se faz um lingüista
A formação acadêmica de Chomsky é curiosa. Filho de professor de hebraico, ele dispunha de um conhecimento familiar da matéria, manejando o inglês e o hebraico com intimidade. Avram Noam nasceu em 7 de dezembro de 1928, em Filadélfia, Pensilvânia. Seu pai era William (originalmente, Zev) Chomsky, judeu russo que emigrou para a América em 1913, para não ser obrigado a servir no Exército. Sua mãe se chamava Elsie Simonofsky. Os dois tinham profundas relações com a tradição judaica, e William logo se tornou especialista na gramática do hebraico.
Noam passou por experiência escolar marcante. Dos 2 aos 12 anos, freqüentou um colégio inspirado nas idéias de John Dewey (1859-1952), filósofo americano que pregava um ensino livre de avaliações formais, a favor da criatividade, com desafios à inteligência e nenhuma caretice. Nesse clima, Noam escreve seu primeiro artigo, para o jornal da escola, sobre a queda de Barcelona, foco de resistência dos anarquistas, durante a Guerra Civil espanhola. Tinha 10 anos.
Tão positiva foi essa experiência de aprendizado libertário, que a passagem para uma escola tradicional, na adolescência, foi um choque. Lá ele aprenderia os horrores da avaliação emburrecedora e da doutrinação ideológica, que ele passou a combater de corpo e alma. Anos depois, em carta a seu biógrafo, ele comentava a consciência que começou a desenvolver ao descobrir-se torcedor do time de futebol da escola. "Por que eu estou torcendo por esse time? Eu não conheço essa gente, e eles não me conhecem. Então, por que eu torço? Bem, é o tipo da coisa que você é treinado para fazer. É uma coisa incutida em você. É uma coisa que leva ao ufanismo e à subordinação mental." Mas seu pensamento libertário o isolava. No dia em que seu país bombardeava Hiroshima e Nagasaki, Chomsky estava em férias numa colônia da escola. Ele disse que se sentiu horrorizado, enquanto seus colegas comemoravam.
Bom leitor desde a infância, Chomsky teve uma formação particular. Aos 13 começou a freqüentar Nova York, onde tinha parentes, entre eles um tio, dono de banca de revistas, que funcionava como centro cultural informal. Era um sujeito de formação fraca, mas inteligente. Levado por parentes, freqüentou círculos anarquistas, tudo imerso no mundo cultural dos imigrantes judeus recém-vindos da Europa, gente com ótima formação cultural, embora ali trabalhassem em ofícios manuais.
Isso explica, em parte, por que Chomsky nunca foi marxista, muito menos leninista: ele sabia que havia brutalidade também do lado soviético. Desenvolveu ainda um senso agudo de leitor: para ele, pensadores marxistas como o húngaro Georg Lukács (1885-1971) não lhe soavam profundos, mas confusos. E a clareza e a simplicidade lhe parecem marcas essenciais das grandes idéias. Daí sua admiração por Dwight MacDonald, o ficcionista inglês George Orwell (1903-1950), e Bertrand Russell (1872-1970). Aliás, um dos raros elementos decorativos presentes na sala de Chomsky no Massachusetts Institute of Technology (MIT), o prestigiado instituto americano onde ele hoje leciona, é um pôster de Russell, admirado como filósofo, aliado das classes populares e crítico do papel da elite na reprodução ideológica de seu poder.
Por essa altura, ele passou a apoiar o sionismo, o movimento religioso e político, originado no século 19, que pregava o restabelecimento, na Palestina, de um Estado judaico. Mas é preciso ver que na época, antes da fundação do Estado de Israel, em 1948, ser sionista era ser de esquerda. Os sionistas de então acreditavam que o novo país seria uma sociedade solidária, com matizes socialistas que se configuraram nos kibutzim, colônias de produção coletiva e cooperação entre os palestinos e os judeus. Alguns anos mais tarde, quando começou a namorar sua futura esposa, Carol Schatz, enfrentou uma escolha difícil: seguir a carreira acadêmica ou migrar para Israel? Mas a maior aproximação com Israel foram algumas semanas passadas em um kibutz, em 1953.
Anos depois, sua posição sobre Israel foi tomada como anti-sionista. Mas foi a palavra que mudou de sentido. A partir da ocupação de territórios palestinos e árabes por Israel, ser sionista passou a significar apoio à política expansionista e antiárabe do Estado de Israel.
Na universidade, caminhou entre a filosofia e a lingüística, sem nunca perder de vista o debate e a prática da esquerda libertária não-comunista. Aprendeu árabe. Em 1947, quando estava decidindo sua especialidade, encontrou Zellig Harris, lingüista e pensador judeu americano que foi para ele um parâmetro moral, político e científico. Harris, também sionista, era estruturalista, e Chomsky aprendeu muito com ele. O suficiente para superá-lo.
Descobertas renovadas
Sua entrada para o MIT ocorreu em 1955. Universidade tecnológica com pouca tradição em humanidades e, por isso mesmo, livre da burocracia e da ciumeira tradicionais nas ciências humanas, o instituto não se importou com o fato de Chomsky ter uma formação híbrida de matemática, psicologia, filosofia e lingüística. Ele vai trabalhar numa atividade de que discordava, o desenvolvimento de uma máquina de tradução, para decodificar comunicações cifradas, na Guerra Fria.
A pesquisa tinha patrocínio de nada menos que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica americanas, mais a Nasa, a agência espacial. Para um esquerdista, era uma saia justa ideológica, que ele desvestiu com elegância: ao publicar o hoje clássico Aspectos da Teoria da Sintaxe, em 1957, o primeiro produzido no MIT, ele cita seus financiadores e declara que é permitida a reprodução daquele trabalho para "qualquer finalidade do governo dos Estados Unidos".
A relação de Chomsky com governos nunca foi tranqüila. Ele rejeita sistematicamente convites oficiais, mesmo vindos de governos de esquerda. Ao Brasil, ele veio este ano, quando o Fórum Social Mundial o convidou - mas aí eram organizações não-governamentais.
No MIT, Chomsky desenvolveu uma crítica ao estruturalismo. Essa corrente concebia a linguagem como algo que se aprendia por imitação. Era uma teoria behaviorista, baseada na crença de que, em última instância, o ser humano não tem nada de inato, tudo é aprendido por adestramento. O maior formulador dessa teoria foi o psicólogo americano B.F. Skinner (1904-1990), famoso pela descrição de mecanismos de controle das ações humanas por estímulo e resposta.
Chomsky tem coceiras na alma quando ouve falar de adestramento, dada sua crença na criatividade humana. Em sua concepção, a linguagem é uma capacidade humana natural, inscrita no DNA. É a tese que defende em vários artigos e livros hoje clássicos, como Lingüística Cartesiana, em que toma o mote do racionalista francês René Descartes (1595-1650) sobre tal questão. Dizia Descartes: se uma criança for criada entre lobos, ela não desenvolverá a linguagem. Mas, se voltar ao convívio humano, tudo volta ao que deveria ser, e ela aprende a falar. Já um macaco, mesmo que seja criado apenas entre humanos, jamais desenvolverá a linguagem, que nele não é inata.
Pode parecer pouco, mas essa posição é revolucionária, ainda que recupere pensadores racionalistas e iluministas. Ao criticar Skinner, Chomsky estava não apenas discutindo lingüística, mas atacando a convergência entre o ponto de vista científico e o desejo de domínio das classes dominantes sobre as pessoas. Mais ainda, Chomsky estava mudando radicalmente a localização do objeto de estudo da lingüística: enquanto para os estruturalistas a língua era algo externo ao homem, para ele o foco era a capacidade inata da linguagem, porque ali, dentro de todos e de cada um, está um tesouro, que é preciso estudar. (Essa capacidade que faz você, leitor, entender esta frase que está lendo agora, frase que nunca tinha lido antes mas que faz sentido - esta capacidade é o objeto da lingüística chomskyana.)
Chomsky também diverge do empirismo dos estruturalistas. Para eles, a tarefa do lingüista consiste em descrever as línguas tal como se apresentam, na fala das pessoas ou nos textos. Para Chomsky, esse caminho positivista é um beco sem saída, ou melhor, um caminho sem fim: cada época, cada região e mesmo cada indivíduo sempre modificam um pouco a língua, de maneira que o trabalho seria uma catalogação infinita. Começou a falar alto a parte matemática de sua formação.
Chomsky postulou que se pode descrever algebricamente as línguas - ou melhor, a língua humana -, a partir de esquemas abstratos e não de dados colhidos em cada situação. Saiu da visão indutiva e passou à dedução: em vez de procurar as particularidades de cada língua, ele cogitou que, sendo manifestações de uma condição inata, as línguas devem guardar características universais, marcas de sua origem comum no cérebro humano.
Para descrever o processo cerebral que dava origem às frases, Chomsky postulou a tese de que a linguagem humana ocorre em dois níveis: uma estrutura profunda, na qual o raciocínio ocorreria sem o uso de palavras (mais propriamente, essa estrutura corresponderia ao que hoje concebemos como um software), e uma estrutura superficial, que são as frases que dizemos, pensamos e escrevemos. Entre os dois níveis haveria um conjunto de transformações, que o lingüista deveria descrever.
Um exemplo clássico. Tome duas frases: "João comprou o caderno" e "O caderno foi comprado por João". Para um estruturalista, que só trabalha com a língua manifestada, observável diretamente, elas são muito diferentes. Já para Chomsky as duas frases seriam, apesar das diferenças óbvias, muito próximas, porque dizem a mesma coisa, descrevem a mesma ação, mudando a ênfase - a primeira começa a frase pelo agente da ação, enquanto a segunda inicia com o objeto (as formas ativa e passiva). Ou seja: na estrutura profunda, as duas frases seriam uma só. As transformações entre um estágio e outro é que seriam objeto do lingüista.
Vêm daí as nomenclaturas originais de sua teoria: ele queria descrever uma gramática (no sentido de conjunto de regras de funcionamento da língua) que fosse gerativa (capaz de gerar, no sentido matemático, todas as frases possíveis a partir de um conjunto limitado de regras e elementos) e transformacional (que descrevesse as regras de transformação entre as duas estruturas).
Militância política
A política sempre esteve presente na vida de Chomsky. Desde o jornal da escola, depois na vivência nas ruas da Nova York da Segunda Guerra, no debate sionista, na aproximação com grupos anarquistas. Sua atuação hoje é desdobramento da velha militância, marcada pelo anarquismo, pela perspectiva libertária, pelo racionalismo iluminista.
Na primeira contribuição relevante à prestigiosa revista The New York Review of Books, em 1967, ele escreveu um longo artigo, A Responsabilidade dos Intelectuais. Nele, Chomsky lembra que, 20 anos antes, lera um texto decisivo em sua formação, de Dwight MacDonald (1906-1982), jornalista de esquerda que formulava perguntas como: "Até que ponto os britânicos e americanos somos responsáveis pelos aterrorizantes bombardeios sobre civis, executados como uma simples técnica por nossas democracias ocidentais culminando em Hiroshima e Nagasaki, certamente um dos mais indizíveis crimes da história?"
Foi com essa inspiração que Chomsky construiu o que, para ele, era a tarefa central dos intelectuais: "Os intelectuais têm condições de denunciar as mentiras dos governos e de analisar suas ações, suas causas e suas intenções escondidas. É responsabilidade dos intelectuais dizer a verdade e denunciar as mentiras". Era o ano de 1967, e os Estados Unidos estavam em guerra com o Vietnã.
Politicamente, Chomsky se define como anarquista. Mas ele tem uma visão própria do termo. Para ele, anarquismo é a convicção de que a obrigação de se explicar é sempre da autoridade, e que esta deve ser destituída caso não consiga fazê-lo. Trata-se de posição não ortodoxa, não partidária e certamente anticomunista, mas pela esquerda.
Para ele, capitalismo é um mercantilismo corporativo, controlado por empresas ajustadas com governos, que sempre intervêm a favor do capital, apesar da fantasia do livre mercado (inexistente, diz ele, nos Estados Unidos e em toda parte), e que exercem controle sobre a economia, a política, a sociedade e a cultura. Seu inimigo é o poder do capital e do Estado. Para ele, os indivíduos é que devem ser a medida das coisas.
Eremita solitário
A posição filosófica de Chomsky, em princípio, não tem relação com sua atividade científica, voltada para a busca do caráter universal da linguagem humana a partir de uma abordagem algébrica. Mesmo a semântica não importa. Sua famosa frase "Colorless green ideas sleep furiously" ("Idéias incolores verdes dormem furiosamente", em português) representa a tese de que qualquer falante reconhece frases mesmo que sem sentido, o que seria uma prova da qualidade inata da linguagem. O Chomsky militante tem interesse no mundo social, ao passo que o cientista não quer saber dele diretamente. Só muito abstratamente, como ele costuma dizer, os dois universos se encontram. Um desses pontos de contato é o Iluminismo - a procura de universais, sejam eles lingüísticos ou republicanos. Outro é a fé na razão, que pode ser a razão filosófica ou a razão do bom senso. Ou o cosmopolitismo, tanto na aceitação da validade de qualquer língua humana quando na compreensão do valor de cada indivíduo.
Seus esforços em decifrar a linguagem humana são, por outro lado, semelhantes aos que dispende na denúncia do que lhe parece errado. Em 1967, ele escreveu: "A fraude e a distorção que cercam a invasão americana no Vietnã estão, agora, tão domesticadas que perderam seu poder de chocar. É portanto útil recordá-las, embora estejamos atingindo novos níveis de cinismo a toda hora e os evidentes motivos desse horror estejam sendo aceitos, com silenciosa cumplicidade, em nossos lares". Se trocarmos Vietnã por Iraque, temos aí o texto que Noam Chomsky pode estar escrevendo neste exato momento.
Conferenciando para centenas de jovens na Austrália, metendo o bedelho nas crises do Oriente Médio ou escrevendo um artigo de lingüística, aí está Avram Noam Chomsky, temperamento eremita, que preferiria ficar quieto em seu canto, mas vive militando pelo mundo, denunciando o poder e espalhando solidariedade.
As frases que ilustram a reportagem foram extraídas de livros e entrevistas de Noam Chomsky. Colaborou Pedro de Moraes Garcez
.